O amigo dylanesco, colaborador
assíduo deste blog e grande escrevinhador, Diego Quadros, faz sua singela
homenagem ao álbum 'Blonde on Blonde', que esta semana completou seu 47º
aniversário, ainda exalando o frescor da juventude. Vamos ao texto:
47 anos de ‘Blonde on Blonde’, de
Bob Dylan – o primeiro álbum duplo de relevância no rock e na música pop em
geral.
Não está exatamente entre os meus
favoritos e tenho certeza de que muitos dylanmaníacos não compartilham do
sentimento. Mas é inegável que ‘Blonde on Blonde’, sétimo álbum do Dylan,
lançado em 16 de maio de 1966, é dos mais importantes em vários aspectos. E
também figura entre os melhores da extensa carreira do bardo. Por quê? Em
primeiro lugar, pelas faixas que compõem o trabalho. Temos ali alguns dos
maiores sucessos do cantor, como ‘Just Like a Woman’, ‘I Want You’ e ‘Stuck
Inside of Mobile with the Memphis Blues Again’, e canções cujas letras esbanjam
preciosas imagens poéticas, tal qual ‘Visions of Johanna’ (essa, das minhas
favoritaças). Mas o repertório é apenas uma das munições desse disco, eleito –
okay, eu sei o quão furadas são essas listas! – pela revista Rolling Stone o
nono melhor de todos os tempos. Na minha opinião, é o conjunto de ousadias
inovadoras – ou de inovações ousadas – que torna esse bolachão duplo tão
relevante à música popular e, sendo mais específico, ao rock and roll como
ritmo, gênero musical e filosofia de vida.
Antes de tudo, consideremos o
período em que foi gravado, durante a turbulenta digressão em que Dylan e seus
então escudeiros nomeados The Hawks (futuros The Band) eram massivamente
vaiados e xingados por todo o território norte-americano, e também pelo resto
do mundo, em virtude de o ex-cantor folk de protesto ter se rendido à
eletrificação e ao mercantilismo musical. (Isso, aliás, é frequentemente citado
por mim como exemplo de “colhões” que tanto faltam a certos artistas de hoje,
que mal toleram uma vaiazinha básica e desatam a choramingar e “xingar muito no
Twitter”. Vão se foder!) Outro ponto chave de contextualização é ter em mente
que Blonde on Blonde seria o último álbum de Mr. Robert Allen antes do
famigerado acidente de motocicleta, que o retiraria de cena por um bom tempo e
que precederia álbuns totalmente diferentes na sequência dos anos.
Pois talvez fosse já vislumbrando
mudanças na carreira que Dylan trocou os estúdios de Nova Iorque pelo de
Nashville, capital da country music, naquela virada de 1965 pra 1966, a fim de
gravar esse disco. E que escolha acertada! Das histórias conhecidas de
bastidores das gravações, Blonde talvez seja o que tenha rendido os causos mais
peculiares e engraçados. Logo de cara, sabendo da exigência de Bob em registrar
as músicas ao vivo, com todos os músicos tocando ao mesmo tempo, o produtor Bob
Johnston precisou mandar pôr abaixo a serrote e marreta todas as divisórias que
separavam o ambiente. Dylan chegou no estúdio apenas com fragmentos esparsos de
letras, sem apresentar aos músicos contratados, pelo menos no início das
sessões, qualquer composição propriamente finalizada. Simplesmente escrevia a
letra na hora e mandava que o acompanhassem. E o que era pior: quando todos
pensavam se tratar de ensaio pra determinada canção, o artista maluco que os
contratara decretava sem rodeios que o take recém executado era o que seria
incluído no disco. E foi assim com praticamente todas as faixas. Sem contar os
títulos, que eram escolhidos aleatoriamente no calor do momento.
As duas canções que
respectivamente abrem e fecham o álbum também renderam boas lembranças por
parte dos envolvidos. A primeira, ‘Rainy Day Women #12 & 35’, cujo refrão
proferia o ambíguo verso “everybody must get stoned” (algo como “todo mundo
precisa ser apedrejado” e “todo mundo precisa ficar chapado”), de acordo com
Dylan, não podia ser executada por um bando de caretas. Então ele fez que
buscassem a bebida mais forte de Nashville (um líquido verde sugestivamente
batizado de Leprechaun) e distribuiu baseados pelo estúdio no intuito de
“relaxar” a rapazeada. Como se não bastasse, os músicos também decidiram trocar
de instrumentos entre si, não importando se dominavam ou não as técnicas inerentes
a cada um. Afinal, a descontração era o espírito desse som, não? O resultado é
aquela faixa gozada, ao estilo de banda de marchinhas desengonçada, com
gargalhadas e risadinhas carregadas de chapação entre uma estrofe e outra. Em
outras palavras: uma canção fantástica! (e que chegou a ser banida das rádios
por conta da paranoia moralista da época).
Na gravação da segunda canção
referida, ‘Sad Eyed Lady of the Lowlands’, que encerra ‘Blonde on Blonde’, o
que até então era impensável aos profissionais músicos do Tennessee: Dylan
rabisca umas estrofes, mostra parte da música, pede que o sigam e então todos
começam a tocar verso, após verso, após verso, após verso, após… os ponteiros
do relógio engoliam o tempo, mas o compositor não dava sinais de que
finalizaria a canção… passaram-se cinco minutos, dez minutos, onze minutos… até
que Bob Dylan apontou aos companheiros o momento do desfecho. Acostumados a
gravar faixas de dois minutos e meio, atendendo aos padrões comerciais das
rádios, os caipiras não acreditavam que o carinha estranho de cabeleira
emaranhada (“sussurrar algo em seu ouvido era como enfiar a cara no matagal”,
lembrou alguém na ocasião) e que mal se comunicava com eles incluiria no disco
uma faixa de onze minutos e vinte segundos. Mas assim aconteceu! E ‘Sad Eyed’
foi a canção popular mais longa já gravada naquele período.
Penso que foi esse conjunto de
fatores inusitados, inerentes a uma personalidade complexa, multifacetada, que
fez de ‘Blonde on Blonde’ um álbum tão revolucionário como o seu predecessor, ‘Highway
61 Revisited’ - o primeiro duplo, o que continha a música mais longa do mercado
fonográfico, o primeiro de um artista pop a ser gravado na country roots
Nashville, o primeiro a citar o nome dos músicos de apoio locais na sua capa (o
que gerou boa publicidade aos mesmos), etc, etc. Muitas outras abordagens
poderiam ser feitas, por fãs que manjam até muito mais do que eu sobre o
assunto, e tenho certeza de que todas seriam válidas e construtivas, porque é
impossível definir um valor fixo, uma verdade absoluta, não só pra esse disco
específico como pra toda obra do cantor de voz anasalada que tinha “as unhas sujas
e não cheirava muito bem”.
Resta aí a lembrança.
Referências:
- Dylan, a biografia – de Howard
Sounes;
- No direction home – a vida e a
música de Bob Dylan – de Robert Shelton.
Originalmente publicado em 16 de
maio de 2013, no ContraVersus.