AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 1)
O DISCÍPULO DE WOODY (1959-1964)
Discografia: Bob Dylan (61), The Freewheelin´ Bob Dylan (62), The Times They Are A-Changin´ (64), Another Side of Bob Dylan (64)
A América era risonha e franca, quase pura, quando o menino Robert Allen Zimmerman inventou o trovador Bob Dylan. Havia subúrbios estalando de novos em torno das cidades, uma TV em cada casa e dois carros em cada garagem, um supermercado - essa incrível e recente invenção do conforto urbano! - em cada esquina e muitos bambolês em todos os armários. Em breve haveria um homem no espaço e um jovem presidente na Casa Branca, falando em justiça social e igualdade racial e namorando Marilyn Monroe escondido - John Kennedy, é claro -, e uma vaga euforia pairava no ar. É certo que existiam coisas como a ameaça nuclear, esta estranha novidade que parecia, a princípio, uma bênção, e agora ninguém estava tão certo assim; e o muro de Berlim e a Guerra Fria, e a CIA tramando sem parar a derrubada de Fidel Castro. Mas dentro das fronteiras da América, uma prosperidade inédita, confortável e segura embalava sonhos de transformação, acordava espíritos aventureiros.
Robert Allen, filho dos donos de uma próspera loja de móveis e ferragens em Hibbing, Minnesota, achou que era um deles. O seu futuro provável - herdar a loja dos pais, como mandava a boa tradição familiar judia - parecia tedioso. Mais interessante era o futuro provável de um moderno trovador urbano, alguém que continuasse na nova década e na nova cidade a linhagem dos vagabundos poetas dos anos 30. Leadbelly, Woody Guthrie, Blind Lemon Jefferson, esses que ele ouvia em discos surrupiados às lojas dos negros, esses que ele ouvia em obscuros programas da madrugada, e em visitas secretas aos guetos.Em 1959, Robert Allen saiu de casa com as bênçãos dos pais para estudar na Universidade de Minnesota. Chegou lá com o nome de Bob Dylan e um outro passado - era um vagabundo, descendente de índios Sioux, sua família vinha do Oklahoma. Instantaneamente, ele havia redesenhado seu futuro.
Não ficou na universidade por muito tempo: um ano depois, já estava em Nova York, tocando violão e gaita nos bares do Village, compondo canções descaradamente parecidas com os talking blues de Woody Guthrie, mas um tanto mais loucas, repletas de visões apocalípticas, uma agilidade política mais feroz, mais adequada aos novos tempos. O Village Voice e o New York Times acharam aquilo muito chique, muito apropriado. John Hammond, um produtor e folclorista repleto de poder na gravadora Columbia, arranjou rapidamente um contrato.
Em 1961, aos vinte anos de idade, dois anos após ter-se inventado, Bob Dylan era o novo artista mais promissor e badalado dos Estados Unidos. É preciso lembrar que não havia Beatles nem Stones nem "rock" como conhecemos hoje. Havia um imenso vácuo de desejos não realizados, uma geração em busca de sua própria voz nessa era de prosperidade e esperança. Com seus talking blues revisitados, suas baladas de amor e fúria - "Blowin´ in the Wind", "Masters of War", "Don´t Think Twice, It´s Alright" , "The Times They Are A-Changin´" -, seu canto fanhoso, seu olhar de poeta e seus cabelos de maluco, mentiroso mas sagaz - ou seja, misterioso -Bob Dylan acabara de descobrir essa voz.
AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 2)
O TROVADOR ELÉTRICO
Discografia: Highway 61 Revisited (65); Bringing It All Back Home (65); Blonde ou Blonde (66); The Basement Tapes (gravado em 66/67, mas lançado apenas em 75)
Onde Dylan teria percebido a mudança? No vento, como o personagem de sua própria canção? Os tempos estavam acelerados, pesados. Não apenas formalmente, com a chegada triunfal do imprevisível - uma onda de bandas inglesas que estavam relendo, com grande sucesso, a mesma ancestral tradição popular americana sobre a qual ele mesmo se debruçava - mas em cada um desses monumentais percalços históricos que parecem se acumular, caprichosamente, sobre cada dia dos anos 60: o assassinato de Kennedy, o assassinato de Martin Luther King, a Guerra do Vietnã, a Guerra dos Seis Dias no Oriente Médio, a pílula, o ácido lisérgico, a minissaia, a pop art, Andy Warhol. O que um pobre garoto poderia fazer?
Em julho de 1965, a platéia do festival de Newport obteve a resposta. Dylan subiu ao palco com uma guitarra elétrica ao pescoço e, acompanhado por uma banda canadense - The Hawks, mais tarde rebatizada The Band, simplesmente -, atacou não as baladas folk que haviam feito sua glória, mas pesadas diatribes impulsionadas a eletricidade e fúria. A voz fanhosa rasgada num grunhido, num rosnar - "How does it feeeel? To be on your oooown..." ele rugia numa canção inédita, "Like a Rolling Stone". Os tempos, e Dylan, haviam definitivamente mudado.
Num veloz curto-circuito típico da era, a fusão folk rock que Dylan pegara no ar, inspirado por Beatles e Stones, voltava a Beatles e Stones e inspirava, por sua vez, Rubber Soul e Between the Buttons. O documentário Don´t Look Back, de D.A. Pennebaker, captura o flagrante deste novo personagem, o Dylan popstar: arrogante, egoísta, defensivo, trincado, partindo o coração da namorada Joan Baez (que ele trocaria pela futura mulher Sarah Lowndes em 66), agredindo e humilhando a imprensa. O álbum duplo Blonde on Blonde captura o outro lado - a musa elétrica de Dylan em sua melhor fase, cuspindo metáforas e visões sobre o ricochetear funky da Band e convidados.
Em julho de 66, dias depois de seu 25.º aniversário, um acidente de moto interrompe a até então irresistível decolagem de Dylan desde o dia em que saiu de casa, em 59. Aparentemente esbofeteado pelo destino, Dylan pára, some, recolhe-se a sua casa de Woodstock. Durante dois anos, boatos de todo tipo atravessam o novo clube do qual ele era sócio-fundador e presidente de honra: a novíssima elite rock. Dylan estaria desfigurado, ou drogado, ou louco, ou morto. Nada disso: trancado em Woodstock com a Band, Dylan estava se divertindo numa grande, longa festa íntima, como revelariam, anos depois, os Basement Tapes.
AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 3)
O CAIPIRA ESCLARECIDO
Discografia: John Wesley Harding (68); Nashville Skyline (69); Self Portrait (70); New Morning (70); Pat Garrett and Billy the Kid (73); Planet Waves (74)
O Dylan que emerge do retiro em Woodstock é, mais uma vez, uma síntese de sua geração - na virada dos trinta anos, casado e pai de família, violentamente confrontado com sua própria mortalidade, ele desacelera, medita, reavalia suas opções. Quando o sereno, semicountry John Wesley Harding é lançado, em 68, parece que Dylan encontrou, enfim, maturidade e serenidade, e está dando um passo adiante num ano ruidoso e explosivo, ano de revolução cultural na China, tumulto estudantil em Paris. Na verdade, Dylan estava apenas ganhando tempo, confessando sua perplexidade diante da quantidade de certezas destruídas que os últimos meses haviam acumulado em sua vida - exatamente como seu público faria durante a nova década, diante de coisas tão desconcertantes quanto a escalada da Guerra do Vietnã, Watergate, drogas pesadas e discoteca.
Sua primeira reação é voltar atrás, recuperar o fôlego - uma fórmula que, crise após crise, se mostra certeira no pop. John Wesley Harding e Nashville Skyline são discos marcados pela country music, pelo abraçar sem reservas da simplicidade, da rusticidade até. A voz está mais grave, mais doce, a lira está serena: o caipira esclarecido canta a vida e o amor sem pedir desculpas, e flerta com a possibilidade - que depois explorará quase até o delírio - da experiência religiosa como provedora de peso e significado.
Os outros discos são irregulares - embora a trilha de Pat Garrett oculte um clássico, "Knockin´ on Heaven´s Door" -, Dylan não se apresenta mais ao vivo, brinca de fazer cinema (em Pat Garrett). Sua vida parece ecoar suas canções: "Êi, baby, este será o fim?", ele tinha perguntado, uma vez. Não: novamente, era apenas o início.
AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 4)
O TROVADOR ELÉTRICO REVISITADO
Discografia: Before the Flood (74); Blood on the Tracks (74); Desire (75); Hard Rain (76); Street Legal (78)
Com uma fúria inigualada desde os tempos do festival de Newport, Dylan e a Band partiram para a estrada em 73. O resultado está captado admirávelmente em Before the Flood, um dos melhores álbuns ao vivo de todos os tempos. Como um grande balanço de sua vida e de sua obra, Dylan revê seu próprio repertório com vigor e espírito crítico, reinterpretando espetacularmente seus próprios cavalos-de-batalha e, assim, construindo a transição entre a sua geração - que se embalava confortavelmente nas diluições mornas do rock pomposo dos 70 - e a geração seguinte - que sonhava a imensa ruptura punk, ainda por vir.
Como que impulsionado pela energia nervosa dessa tour, Dylan atravessa os últimos anos 70 a bordo de uma espécie de nuvem magnética. Sem a Band, acompanhado por músicos diversos, quase semi-amadores, ele compõe longas e sinistras canções de amor, abandono e desejo, cada vez mais crípticas e cabalísticas, ocasionalmente comentando algum assunto político que, por acaso, atravesse seu campo de visão. É uma produção estranhamente brilhante, essa do Dylan que vê chegar a meia-idade sem ter encontrado ainda resposta alguma - irregular mas intrigante, angulosa. Os cripto-fãs que analisam cada milímetro de suas letras - uma degeneração da dizimada cultura sixties, como os dead heads e os neo-hippies - não chegam a perceber para onde Dylan está rumando. Emocionalmente à deriva, ele, que sempre pregou a ruptura, anseia agora pela ordem no caos. Qualquer ordem serve.
AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 5)
O CRENTE
Discografia: At Budokan (78); Slow Train Coming (79); Saved (80); Shot of Lore (81)
A ordem que Dylan encontra é a mais banal possível: em 1980, para espanto de fãs e não-fãs e delícia da imprensa, ele anuncia que acaba de se converter ao protestantismo fundamentalista, uma das formas mais simplistas de fé religiosa cristã que pode existir. Com um único gesto, Dylan não apenas renega todo o seu passado imediato como livre pensador secular mas também toda a sua história familiar como judeu.
A esterilidade pessoal que se esconde atrás dessa escolha aparentemente estapafúrdia revela-se nos discos deste período - os piores que Dylan conseguiu fazer em toda a sua carreira. Não existe mais o poeta alucinado, o trovador arrogante, o crítico inclemente, apenas um homem sozinho e infeliz, implorando a misericórdia de Deus por pecados reais ou presumidos - o pior deles, sem dúvida, o de ter renegado o próprio talento.
AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 6)
O QUE VOLTOU DOS MORTOS
Discografia: Infidels (83); Empire Burlesque (85); Knocked out loaded (87); Oh Mercy (89)
Na capa de Infidels, Bob Dylan, ritual Yarmulk na cabeça, ajoelha-se no solo de Israel. Na primeira faixa do disco, o quase-reggae "Jokerman", sua voz madura, apaziguada, discorre lucidamente sobre as incontáveis armadilhas de um mundo tornado mais complexo, e mais cruel, pela mesma tecnologia que deveria simplificá-lo e salvá-lo. Na virada dos quarenta anos, na entrada de uma década que se revelaria uma estranha mistura de gozo e paradoxo - Aids e Reagan e MTV e computadores e satélites e mídia global dançando alucinadamente -, Dylan parece ter achado o olho do furacão. Robert Allen Zimmerman reconciliou-se afinal com sua criatura: ele, agora, pode ser o menino judeu de Hibbing, o bardo de Greenwich Village e o popstar recluso de Malibu numa única pessoa.
Os discos se deixam espaçar, calmamente. Dylan compõe como quem volta a andar depois de uma longa enfermidade debilitante, com cuidado. Uma turnê com Tom Petty, discípulo tornado comparsa, constrói vínculos com mais uma geração. Uma aliança com o produtor Daniel Lanois, que vem de outra formação e outra experiência, abre portas insuspeitadas em sonoridade e idéias: Oh Mercy é um triunfo. Quantas mortes e quantas vidas Bob Dylan ainda vai inventar?
(textos de Ana Maria Bahiana, e publicados originalmente na Revista Bizz de janeiro de 1990, gentilmente cedidos pela autora)