quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O que já sabemos sabemos sobre “Tempest”.


Estamos entrando no finalzinho de agosto e a ansiedade pela chegada de setembro, e com ele o lançamento de ‘Tempest’, novo álbum de Bob Dylan, só vai aumentando... Aqui, o amigo dylanesco Fábio Feldman, fala das suas expectativas e de tudo aquilo que já sabemos antecipadamente sobre o 35º disco de estúdio do bardo. Vamos ao texto:

Daqui a duas semanas (50 anos e seis meses após o lançamento de seu álbum de estréia), o verdadeiro Mr. Jones lançará seu trigésimo quinto disco, "Tempest". Como não paro de pensar nisso um minuto, segue uma breve compilação que fiz de algumas coisas que já sabemos sobre essa tempestade perfeita: 

1. O disco terá 10 canções, será produzido por Bob Dylan/Jack Frost, contará com a genial banda que o tem acompanhado ao longo dos últimos anos + eventuais acordeons de David Hidalgo (Los Lobos) e, sem sombra de dúvidas, será incrível!  
2. A canção homônima, inspirada em “The Titanic”, da Família Carter, parece ser uma mini-epopéia dylanesca – cruzamento entre “The Wreck of Edmund Fitzgerald” e “Desolation Row”, narrando o mais famoso naufrágio de todos os tempos. Ao mesmo tempo em que considerações mais gerais são tecidas sobre o evento, as reações de uma série de diferentes personagens são representadas: um tal de Wellington se tranca numa cabine; Jim Backer olha a morte nos olhos, resignadamente; Davy, o cafetão, se livra de suas garotas à medida que a água sobe; e Leo (DiCaprio?) é mencionado duas vezes, fazendo sabe-se lá o quê. Trata-se de uma valsa, em tempo ternário, e já figura entre as três mais longas composições de Dylan, possuindo 14 minutos. 

3. “Tin Angel” é outra canção bem extensa: 9 minutos. Parece narrar uma história alucinante de vingança, seguindo a tradição lírica das murder ballads do cancioneiro tradicional americano. A mulher do “Chefe” foge com outro. Em um cenário que remete ao universo dos westerns americanos, ele vai atrás dela, arrastando consigo um rio de sangue! Um crítico menciona Walter Hill e Gregory Peck; eu espero por Sam Peckinpah.

4. Muito foi dito sobre as outras faixas, mas as informações não batem 100%. Alguns apontam “Long and wasted years” como uma balada doce, ainda que levemente desencantada; há quem diga que lembra “Three angels” de "New Morning", com seu canto-falado. “Pay in Blood” me chama a atenção mais do que qualquer outra! Como não salivar diante de versos como “You bastard, I’m supposed to respect you?/ I’ll give you justice”? Só imaginar aquela voz ancestral grunhindo “Eu pago em sangue – mas não o meu!” já é o suficiente pra deixar qualquer dylanmaníaco subindo pelas paredes! 
5. A faixa que fecha o álbum, “Roll on, John”, embora inspirada num antiga balada folk, é uma homenagem a John Lennon. Menções a William Blake também ocorrem. Dizem ser a mais terna composição de "Tempest" – e, possivelmente, um fechamento perfeito! 

6. Duas canções completas e o trecho de uma terceira já vazaram na net. A primeira é “Early Roman Kings”, um blues da pesada, marcado por um riff tradicional, chupado de Muddy Waters/Willie Dixon. A voz de Bob cai como uma luva e a letra – bem, a meu ver, é melhor do que todas as de "Together Through Life" combinadas! Aparentemente, os “Roman Kings” a que se refere, não são os verdadeiros reis romanos de outrora, mas uma gangue novaiorquina do início do século XX, formada, basicamente, por italianos. É interessante destacar o modo ambíguo como tais “valentões” são representados, rolando aquela oscilação que caracteriza os filmes de máfia, nos quais membros da “Família” são vistos, simultaneamente, como heróis e vilões. Mesmo sendo “lecherous and  treacherous”, vivendo como vampiros – enfiando suas estacas e deixando rastros de fogo atrás de si – eles são também figuras desejadas (e invejadas) pela maioria. Essa ambiguidade é intensificada ainda mais quando, na quarta estrofe, a terceira pessoa dá lugar à primeira e somos forçados a nos colocar diretamente sob a pele de um gangster! Embora não seja novidade dentro do universo das composições dylanescas (pensemos em canções como “Man in the long black coat” e “Ballad of Hollis Brown”), tal operação brechtiana de alteração de perspectivas me parece, aqui, atingir um pico qualitativo ímpar. Somos, simultaneamente, vítimas e algozes em um mundo em ruínas (mundo este que, concentrado no interior das paisagens mágicas de Dylan, onde todas as barreiras do tempo são subtraídas, pode muito bem ser o nosso…).


7. A faixa de abertura, “Duquesne Whistle”, é um nocaute! 42 segundos de uma bela introdução instrumental (algo inédito em toda a discografia do bardo), são marcadas por  guitarras se metamorfoseando em clarinetes e nos transportando de volta pra os loucos anos 20. A letra é ainda um pequeno enigma. Há quem a conecte a Earl Hines, um dos pais do piano jazzístico, nascido e criado em Duquesne. Ontem, descobri o seguinte link, contendo a partitura de uma obscura canção folk tradicional, chamada “The wreck of the flyer Duquesne”:


Não a conheço, logo, é preciso checar bem antes de fechar qualquer conexão. De qualquer modo, a letra, co-assinada por Robert Hunter, é repleta de momentos luminosos. Agridoce, plena daquela suave melancolia que atravessa os melhores momentos da trinca Love and theft/Modern Times/Together Through Life, ela nos conduz a cenários antigos, enquanto, num passeio de trem, o eu lírico sofre de amores por uma misteriosa “dark lady” – ao mesmo tempo, dissimulada, fria e doce como a mãe de Jesus Cristo. É a musa do Dylan fase-Frost – aquela que nasceu no Mississipi, atravessou as canções de Charley Patton, dançou entre os cães infernais de Robert Johnson e carrega a herança popular americana inteira nas costas.

http://www.youtube.com/watch?v=vANZ-GGaOC0

 http://www.youtube.com/watch?v=V2r5C-t4naw

8. Além dessas duas pérolas, fomos presenteados com 58 segundos de “Scarlet Town”, uma bela balada folk que me pareceu uma mistura de “Ain’t talkin’” e algo saído de dentro das "Basement Tapes". Porém, embora seja cedo pra dizer algo de mais definitivo sobre ela, dylanólogos de plantão já detectaram a raiz da canção: Dylan andou lendo poesia romântica americana – em especial, a de John Greenleaf Whittier, de quem tomou de empréstimo algumas imagens iniciais:
Dylan:
In Scarlet Town, in the hot noon hours,
There’s palm leaf shadows and scattered flowers
Beggars crouching at the gate
Help comes, but it comes too late.

Whittier. Extraído de “To Avis Keene”:
The palm-leaf shadow for the hot noon hours,
And on its branches dry
Calls out the acacia’s flowers

Dylan:
By marble slabs and in fields of stone
You make your humble wishes known,
I touched the garment, but the hem was torn
In Scarlet Town, where I was born.

Whittier. Extraído de “The Wish Of To-Day”
But, bowed in lowliness of mind,
I make my humble wishes known;
I only ask a will resigned,
O Father, to Thine own!

Como diria Picasso: - “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”!


9. Pra fechar, Dylan confidenciou à Rolling Stone que sua idéia era criar um álbum de canções religiosas, mas a coisa saiu dos trilhos e "Tempest" surgiu no lugar. Não se sabe, exatamente, o que ele quer dizer com “canções religiosas” a essa altura do jogo. Estaria ele pensando em algo próximo da trilogia oitentista – em especial, o altamente sub-valorizado "Saved"? Ou estaria o compositor sonhando com novas formas de expressar sua devoção religiosa? Tá aí algo que nunca saberemos.

O curioso é que, não conseguindo fechar um conjunto de músicas gospel, ele acabou criando o que muitos críticos têm apontado como o mais pesado de sua carreira! Como em "Time out of Mind", o clássico de 1997, há muita escuridão em "Tempest", ainda que, musicalmente, ele pareça ser bastante variegado, lembrando, até o momento, aquela pequena jóia enciclopédica que foi "Love and Theft".

Agora é esperar até o dia 11 de setembro e conferirmos a obra em sua totalidade.

Fábio Feldman

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