Estamos entrando no finalzinho de
agosto e a ansiedade pela chegada de setembro, e com ele o lançamento de ‘Tempest’,
novo álbum de Bob Dylan, só vai aumentando... Aqui, o amigo dylanesco Fábio
Feldman, fala das suas expectativas e de tudo aquilo que já sabemos
antecipadamente sobre o 35º disco de estúdio do bardo. Vamos ao texto:
Daqui a duas semanas (50 anos e seis meses após o
lançamento de seu álbum de estréia), o verdadeiro Mr. Jones
lançará seu trigésimo quinto disco, "Tempest". Como não paro de pensar
nisso um minuto, segue uma breve compilação que fiz de algumas coisas que já
sabemos sobre essa tempestade perfeita:
1. O disco terá 10 canções, será produzido por Bob Dylan/Jack Frost,
contará com a genial banda que o tem acompanhado ao longo dos últimos anos
+ eventuais acordeons de David Hidalgo (Los Lobos) e, sem sombra de
dúvidas, será incrível!
2. A canção homônima, inspirada em “The Titanic”, da Família Carter,
parece ser uma mini-epopéia dylanesca – cruzamento entre “The Wreck of
Edmund Fitzgerald” e “Desolation Row”, narrando o mais famoso naufrágio de
todos os tempos. Ao mesmo tempo em que considerações mais gerais são
tecidas sobre o evento, as reações de uma série de diferentes personagens
são representadas: um tal de Wellington se tranca numa cabine; Jim Backer
olha a morte nos olhos, resignadamente; Davy, o cafetão, se livra de suas
garotas à medida que a água sobe; e Leo (DiCaprio?) é mencionado duas
vezes, fazendo sabe-se lá o quê. Trata-se de uma valsa, em tempo ternário,
e já figura entre as três mais longas composições de Dylan, possuindo 14
minutos.
3. “Tin Angel” é outra canção bem extensa: 9 minutos. Parece narrar
uma história alucinante de vingança, seguindo a tradição lírica das murder
ballads do cancioneiro tradicional americano. A mulher do “Chefe” foge com
outro. Em um cenário que remete ao universo dos westerns americanos, ele
vai atrás dela, arrastando consigo um rio de sangue! Um crítico menciona
Walter Hill e Gregory Peck; eu espero por Sam Peckinpah.
4. Muito foi dito sobre as outras faixas, mas as informações não batem
100%. Alguns apontam “Long and wasted years” como uma balada doce, ainda
que levemente desencantada; há quem diga que lembra “Three angels” de "New Morning", com seu canto-falado. “Pay in Blood” me chama a atenção mais
do que qualquer outra! Como não salivar diante de versos como “You
bastard, I’m supposed to respect you?/ I’ll give you justice”? Só imaginar
aquela voz ancestral grunhindo “Eu pago em sangue – mas não o meu!” já é o
suficiente pra deixar qualquer dylanmaníaco subindo pelas paredes!
5. A faixa que fecha o álbum, “Roll on, John”, embora inspirada num
antiga balada folk, é uma homenagem a John Lennon. Menções a William Blake
também ocorrem. Dizem ser a mais terna composição de "Tempest" – e,
possivelmente, um fechamento perfeito!
6. Duas canções completas e o trecho de uma terceira já vazaram na
net. A primeira é “Early Roman Kings”, um blues da pesada, marcado por um
riff tradicional, chupado de Muddy Waters/Willie Dixon. A voz de Bob cai
como uma luva e a letra – bem, a meu ver, é melhor do que todas as de "Together Through Life" combinadas! Aparentemente, os “Roman Kings” a que se
refere, não são os verdadeiros reis romanos de outrora, mas uma gangue
novaiorquina do início do século XX, formada, basicamente, por italianos.
É interessante destacar o modo ambíguo como tais “valentões” são
representados, rolando aquela oscilação que caracteriza os filmes de
máfia, nos quais membros da “Família” são vistos, simultaneamente, como
heróis e vilões. Mesmo sendo “lecherous and treacherous”, vivendo
como vampiros – enfiando suas estacas e deixando rastros de fogo atrás de
si – eles são também figuras desejadas (e invejadas) pela maioria. Essa
ambiguidade é intensificada ainda mais quando, na quarta estrofe, a
terceira pessoa dá lugar à primeira e somos forçados a nos colocar
diretamente sob a pele de um gangster! Embora não seja novidade dentro do
universo das composições dylanescas (pensemos em canções como “Man in the
long black coat” e “Ballad of Hollis Brown”), tal operação brechtiana de
alteração de perspectivas me parece, aqui, atingir um pico qualitativo
ímpar. Somos, simultaneamente, vítimas e algozes em um mundo em ruínas
(mundo este que, concentrado no interior das paisagens mágicas de Dylan,
onde todas as barreiras do tempo são subtraídas, pode muito bem ser o
nosso…).
7. A faixa de abertura, “Duquesne Whistle”, é um
nocaute! 42 segundos de uma bela introdução instrumental (algo inédito em toda
a discografia do bardo), são marcadas por guitarras se metamorfoseando em
clarinetes e nos transportando de volta pra os loucos anos 20. A letra é ainda
um pequeno enigma. Há quem a conecte a Earl Hines, um dos pais do piano
jazzístico, nascido e criado em Duquesne. Ontem, descobri o seguinte link,
contendo a partitura de uma obscura canção folk tradicional, chamada “The wreck
of the flyer Duquesne”:
Não a conheço, logo, é preciso checar bem antes de
fechar qualquer conexão. De qualquer modo, a letra, co-assinada por Robert
Hunter, é repleta de momentos luminosos. Agridoce, plena daquela suave
melancolia que atravessa os melhores momentos da trinca Love and
theft/Modern Times/Together Through Life, ela nos conduz a cenários
antigos, enquanto, num passeio de trem, o eu lírico sofre de amores por uma
misteriosa “dark lady” – ao mesmo tempo, dissimulada, fria e doce como a mãe de
Jesus Cristo. É a musa do Dylan fase-Frost – aquela que nasceu no Mississipi,
atravessou as canções de Charley Patton, dançou entre os cães infernais de
Robert Johnson e carrega a herança popular americana inteira nas costas.
8. Além dessas duas pérolas, fomos presenteados com
58 segundos de “Scarlet Town”, uma bela balada folk que me pareceu uma mistura
de “Ain’t talkin’” e algo saído de dentro das "Basement Tapes". Porém,
embora seja cedo pra dizer algo de mais definitivo sobre ela, dylanólogos de
plantão já detectaram a raiz da canção: Dylan andou lendo poesia romântica
americana – em especial, a de John Greenleaf Whittier, de quem tomou de
empréstimo algumas imagens iniciais:
Dylan:
In Scarlet Town, in the hot noon hours,
There’s palm leaf shadows and scattered flowers
Beggars crouching at the gate
Help comes, but it comes too late.
In Scarlet Town, in the hot noon hours,
There’s palm leaf shadows and scattered flowers
Beggars crouching at the gate
Help comes, but it comes too late.
Whittier. Extraído
de “To Avis Keene”:
The palm-leaf shadow for the hot noon hours,
And on its branches dry
Calls out the acacia’s flowers
The palm-leaf shadow for the hot noon hours,
And on its branches dry
Calls out the acacia’s flowers
Dylan:
By marble slabs and in fields of stone
You make your humble wishes known,
I touched the garment, but the hem was torn
In Scarlet Town, where I was born.
By marble slabs and in fields of stone
You make your humble wishes known,
I touched the garment, but the hem was torn
In Scarlet Town, where I was born.
Whittier. Extraído
de “The Wish Of To-Day”
But, bowed in lowliness of mind,
I make my humble wishes known;
I only ask a will resigned,
O Father, to Thine own!
But, bowed in lowliness of mind,
I make my humble wishes known;
I only ask a will resigned,
O Father, to Thine own!
Como diria Picasso: - “Bons artistas copiam, grandes
artistas roubam”!
9. Pra fechar, Dylan confidenciou à Rolling Stone
que sua idéia era criar um álbum de canções religiosas, mas a coisa saiu dos
trilhos e "Tempest" surgiu no lugar. Não se sabe, exatamente, o que ele
quer dizer com “canções religiosas” a essa altura do jogo. Estaria ele pensando
em algo próximo da trilogia oitentista – em especial, o altamente
sub-valorizado "Saved"? Ou estaria o compositor sonhando com novas formas de
expressar sua devoção religiosa? Tá aí algo que nunca saberemos.
O curioso é que, não conseguindo fechar um conjunto
de músicas gospel, ele acabou criando o que muitos críticos têm apontado como o
mais pesado de sua carreira! Como em "Time out of Mind", o clássico de
1997, há muita escuridão em "Tempest", ainda que, musicalmente, ele pareça
ser bastante variegado, lembrando, até o momento, aquela pequena jóia
enciclopédica que foi "Love and Theft".
Agora é esperar até o dia 11 de setembro e
conferirmos a obra em sua totalidade.
Fábio Feldman
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