Uma semaninha antes do seu
lançamento oficial e eis que 'Tempest', novo álbum de Bob Dylan, vazou na internet. Uma
pedrada dylanesca! Um dia após o vazamento, a Sony tratou de disponibilizar oficialmente
o álbum, para audição gratuita, através do iTunes.
Confesso
que estou embriagado de 'Tempest'! Desde ontem à noite (03/09, quando o
disquinho vazou) que não escuto outra coisa. Diria até que após sucessivas
audições, já tenho inclusive minhas preferidas: "Narrow Way";
"Pay in Blood" & "Duquesne Whistle", mas os amigos
dylanescos não devem levar isto tão a sério, porque hoje mesmo pode mudar. Em
se tratando de Dylan, sou extremamente volúvel e às vezes demoro um pouco pra
me acostumar com algumas canções.
A faixa
título, "Tempest", a tão aguardada canção sobre o naufrágio do
Titanic, é uma verdadeira epopeia de quase 14 minutos! Poderia mesmo ser um
filme, mas daqueles antigos, talvez em preto & branco, sem os efeitos
especiais do James Cameron.
Abaixo, mais uma excelente
contribuição do amigo dylanesco Márcio Grings, que nos permitiu compartilhar
sua ótima resenha do novo disco:
Tempestade na alma!
Resenha de "Tempest",
35° álbum de Bob Dylan (04 de setembro de 2012) - Com comentários, impressões e
citações extraídos da comunidade do Facebook ‘Bob Dylan - Brasil’ (Agradecimentos: Doofy Mostarda,
Sergio Pinho Alves, Carolina Andrade, Thiago Joey, Fábio Feldman, Thiago
Ramires, e muitos outros dylanescos de plantão. Agradecimento especial: Denise
B. Lopes)
O navio nem atracou, e o disco já
está navegando. Em primeiro lugar: aos 71 anos, ninguém, mas ninguém mesmo -
toca Dylan como Dylan. E falo principalmente das canções dos últimos três
álbuns – não incluindo o natalino “Christmas in the heart” (2009). Colocando no
saco as novas músicas que acabam de vazar na rede, os 10 temas também foram
compostos sob medida para a irregular voz catarrenta do cantor e compositor
norte-americano.
E mais: profetizo sem medo de
errar: ”Tempest”, álbum com data agendada para o próximo dia 11/09, sem dúvida irá
postular em todas as listas dos melhores de 2012. Depois de vazar por inteiro
na internet na última segunda-feira (03), a Sony resolveu disponibilizar o
álbum na íntegra para audição (gratuitamente e por tempo limitado).
Ouça via iTunes aqui: http://itunes.apple.com/ br/preorder/tempest/ id544472560
O título já é o recordista do ano
no quesito pré-venda no site Amazon. Sobre o nome do álbum, especulou-se que
seria uma referência à “A Tempestade”, última obra de William Shakespeare.
Dylan laconicamente refutou a referência em entrevista à revista Rolling
Stone. Agora prepare-se - as letras
estão sim - shakesperianas e quilométricas: amor, tragédia, traição, vingança,
e tantos outros temas comuns à humanidade a milênios.
Segundo o blog Dylanesco, a
imagem da capa mostra um detalhe da fonte Palas Atena, localizada em Vienna,
Áustria. Atena é, na mitologia grega, a deusa da guerra, da civilização, da
sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade. John Smith, um
morador de Duluth, onde Dylan nasceu, afirmou no Facebook que na escola da
cidade havia uma estátua parecida.
O bardo gravou o álbum no Groove
Masters, estúdio de Jackson Browne, em Santa Monica (CA), com a banda que
atualmente o acompanha na estrada (mesma trupe que passou pelo Brasil em
abril), mais a ajuda de David Hidalgo (Los Lobos). O disco foi produzido por
Jack Frost, ou seja, pelo próprio Bob Dylan, já que Frost não passa de um alter
ego do artista.
“Tempest” começa com a satírica
“Duquesne Whistle" e sua introdução foxtrote em fade-in que nos deixa com
a sensação de estarmos ouvindo um radinho de pilha ao longe, como um som opaco
vindo da cozinha. Piano, violão e guitarras fazem um empolgante esquenta ‘jazzy’
de 43 segundos. Na sequência surge uma melodia repetitiva empurrada pela
pulsação do contrabaixo acústico de Tony Garnier, em conjunto com a bateria de
George Receli e a guita' rítmica de Stu Kimball e supostamente David Hidalgo.
Dylan canta “You say I’m a gambler / You say I’m a pimp / But I ain’t neither
one” [Você diz que eu sou um jogador / Você diz que eu sou um cafetão / Mas eu
não sou nenhum desses]. A banda soa como uma velha locomotiva passeando num
desenho animado. “Duquesne Whistle” ganhou vídeo clipe e também foi escolhida
para figurar como primeiro single do álbum.
“Soon After Midnight” reza na cartilha country.
Também rememora Buddy Holly, parece algo familiar, antigo e deslocado no
tempo. Steel guitar mandando ver, entrecortado por uma guitarra à lá James
Burton. Dylan avisa que logo depois da meia noite, ele irá se encontrar com a
Rainha das Fadas. "Charlotte's
a harlot / Dresses in scarlet / Mary dresses in green / It's soon after midnight / And I've got a
date with the Fairy Queen". Hummm... Isso me soa a um puteiro!
“Narrow Way" é um hipnótico
blues pesado com riff de guitarra repetitivo que nos deixa em ponto de bala. A
música nunca muda, e isso, acreditem - não é irritante! 7min e 28seg de pura
festança, no máximo uma guitarra gritando um pouco mais alto que a outra. Como
galos de rinha reconhecendo o terreno e mostrando as esporas. Logo no início
ele diz: "I won't even think about what I left behind" [eu não vou
nem pensar naquilo que deixei para trás]. Quando estamos no meio do caminho,
não tem outro jeito. Receli dá show na bateria. Alguém disse que “Narrow Way”
poderia ter sido gravada em 1965, quem sabe seria uma boa faixa em “Bringing It
All Back Home” ou “Highway 61 Revisited”? Não tenho dúvida que entrará nos
setlists de suas apresentações. Outra constatação: acredito que Dylan tenha
encontrado sua melhor banda, ou no mínimo a que mais raciocina na sua batida
atual.
“Long and Wasted Years” trata-se
de outro tema chamuscado com influência caipira. Na introdução, os músicos
atuam como uma banda de quermesse com equipamentos de segunda mão. Quando Dylan
canta, o lance fica mais sofisticado. Dá vontade de “tirar” a prenda e sair
dançando de rosto colado pela casa. A melodia lembra “I'm Tired Joey Boy”, de
Van Morrison, tema que Dylan tocou no ‘Theme Time Radio Hour’, seu extinto
programa de rádio. Outra balada de lascar! A letra sugere um amor proibido. Em
dado momento, Dylan confessa: "I wear dark glasses to cover my eyes /
there are secrets in them i cant disguise” [Eu uso óculos escuros para cobrir
meus olhos / Há segredos neles eu não consigo disfarçar]. Revelador.
Se buscarmos comparações com
"Love & Theft, álbum lançado em 2001 (um dos preferidos de Bob), eis a
"Mississippi" de "Tempest". "Pay in Blood" tem o
vocal catarrento e desgastado, tipo “recém acordei, fumei um charuto e vou
cantar uma canção!?!?”. Desde já é minha preferida. Eu percebo resquícios de
Stones nas guitarras, e nesse caso, abriria um exceção imaginando Keith
Richards como vocalista. Imaginem como iria ficar? Finésse!
Bom, chegamos em “Scarlett Town”.
Violão na linha de frente, banjo no meio campo, piano minimalista e violino a
lá "Scarlett" Rivera. Uma triste bonita melodia que poderia ser
trilha sonora de um faroeste de Sam Peckinpah (eu já vi esse filme?!). A canção
lembra vagamente o clima sombrio de “Nettie Moore”, de ‘Modern Times’. E essa “Scarlett
Town” que Dylan nos narra, pode ser qualquer pequena cidade do mundo. Em uma de
minhas audições, voltei ao bairro, a rua, relembrei muitas pessoas com as quais
convivi. Quando adentramos o cerne do tema, Bob SEMPRE nos convence.
“Early Roman Kings” não passa de
um blues descarado, encardido que emula “I'm a Man”, de Bo Didley. "Mais
uma daquelas que o velho pega emprestado". Exato! Dylan aprecia
recauchutar canções antigas. Algo que ele fez com mais frequência nos últimos
álbuns. E esses empréstimos melódicos são comuns na história do blues. Como bem
lembrou o amigo Sérgio P. Alves no Facebook: “I'm a Man” também foi inspirada
em “Hoochie Coochie Man”, de Dixon. Por sua vez, serviu de ponto de partida
para a criação de “Manish Boy”. Ou seja, ninguém é de ninguém. Destaque para o
acordeão de David Hidalgo, fazendo as vezes de Little Walter e
transformando a música numa espécie de
Texmex Blues. Aparentemente, os “Roman Kings” a que se refere, não são os
verdadeiros reis romanos de outrora, mas uma gangue nova-iorquina do início do
século XX, formada, basicamente, por carcamanos.
“Tin Angel”, fala sobre um homem
em busca de um amor perdido. Musicalmente é um dos pontos menos impressionantes
do disco. De todo o modo, a banda fica apenas tique-taqueando e fazendo a cama
para que o narrador possa contar uma das mais enigmáticas e trágicas histórias
de amor da biografia dylanesca. Desde “Isis” ele não incursionava por um tema
tão brutal: “You died for me / I’ll die for you". [Você morre por mim / E
eu morro por você]. Ela coloca a lâmina no seu coração e parte para a
eternidade ao encontro do amante. E ao chegarem no céu, existem tochas brilhantes
que iluminam noites e dias. Alguém tem dúvida que Dylan é o Shakespeare da
música POP?
“Tempest”, a faixa título do
trabalho, emula uma das tragédias mais lembradas do século passado, o naufrágio
do Titanic. O tema parece ter sido inspirado em uma canção da Família Carter.
Essa autêntica epopeia dylanesca em ritmo de valsa, que começa puxada por uma
rabeca e acordeão, figura entre as três canções mais longas do compositor
(13min e 54seg) e mistura uma série de personagens obscuros com nomes ligados
ao tema cinéfilo do filme, como o ator Leonardo Di Caprio (mencionado duas
vezes). No entanto, esqueçam qualquer referência a James Cameron ou Celine
Dion, o lance aqui é ancestral, remonta a uma antiga canção de ninar
folclórica.
“Tempest” fecha as cortinas
homenageando John Lennon. “Roll on John” saúda o velho amigo e narra episódios
da carreira do Beatle, com direito a citações de “A Day in the Life” cruzando
frente a versos de William Blake. "From the Liverpool docks to the red-light Hamburg streets / Down
in the quarry with The Quarrymen / Playing to the big crowds, playing to the
cheap seats / Another day in the life on your way to your journey then". Novamente
steel guitar, violões, um banjo rolando de leve. Belo tributo ao mais
turbulento dos Fab Four.
Simplesmente o Melhor Álbum de
2012. Na minha estante ficará lado a lado com "Time Out of Mind",
"Love & Theft" e "Modern Times". Daqui há 20 ou 30
anos, tenham certeza, ainda vamos falar de "Tempest" e das profecias
incrustadas nas letras. Afinal: "Se a Bíblia estiver certa o mundo vai
explodir". Certas vezes ficamos com medo das turbulências que entortam em
frente nossos olhos. Eu afirmo: - nada como uma tempestade dessas para nos
deixar encharcados de júbilo.
por Márcio Grings, originalmente
publicado no Blog do Grings:
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