Depois de nos brindar com um
texto pra lá de bacana, sobre as 'Basement Tapes', de Bob Dylan & The Band,
o amigo dylanesco Ismael Calvi Silveira nos presenteia com a celebração dos 45
anos de um dos melhores álbuns da história (o melhor?): 'Music From Big Pink',
disco de estréia da The Band. Confiram:
Hora de celebrar: 45 anos de ‘Music
From Big Pink’, da The Band!
Se na semana anterior
estávamos celebrando os 38 anos do lançamento de Basement Tapes, a versão
oficial das sessões de gravação entre Bob Dylan e The Band, hoje temos mais uma
razão para comemorar. Neste dia, no aparentemente longínquo ano de 1968,
chegava às lojas 'Music From Big Pink', emblemático disco de estreia da The Band
que ajudou a reformular a música americana posterior a seu surgimento. O disco
marca o início de um legado que ultrapassa a própria duração da banda, e isso
pode ser visto através da idolatria de alguns músicos: Eric Clapton, Roger
Waters e George Harrison, por exemplo, são fãs declarados tanto da Banda quanto
do 'Music From Big Pink'. Isso é um belo indicador do que nos espera, não?
Há 46 anos atrás, reunidos com
Bob Dylan em uma casa rosada próxima a Woodstock, em West Saugerties, Nova
Iorque, tudo começava. Os então The Hawks já tinham trabalhado com a lenda
Ronnie Hawkins e com o próprio bardo, embora apenas como banda de apoio; ou
seja, a rapazeada já era escolada e tinha uma afinação bacana. Mas foi naqueles
meses em que Garth Hudson, Levon Helm, Richard Manuel, Rick Danko e Robbie
Roberson estiveram sob a orientação íntima de Bob Dylan, que a The Hawks se
credenciou a abandonar aquele nome que representava a sua metafórica infância
musical. O ritual de passagem estava completo e os cinco estavam aprovados: era
hora de escolher o verdadeiro nome pelo qual eles seriam lembrados, o nome que
representaria os homens nos quais eles haviam se tornado ao longo de meses de
aulas práticas sobre folk, country e blues com o mestre Dylan.
A Banda pode soar um tanto
presunçoso, mas é, no fundo, bastante certeiro e veio de uma forma natural.
Como o Richard Manuel explicou no filme The Last Waltz, primeiro eles haviam
tentado como “The Honkies” e “The Crackers”, mas a gravadora não aprovara os
nomes (e, cá entre nós, fez um grande favor aos caras). Durante uma turnê com
Bob, eles eram chamados de “the band” e, como todo apelido indesejado, acabou
pegando. Assim, aclamados pela opinião pública desde a escolha do nome, era
hora de gravar seu próprio material, digno do nome.
Em 1968, nosso grupo partiu de um
material já pronto: três faixas que constam no álbum (“Tears of Rage”, “This
Wheel’s On Fire” e “I Shall Be Released”) já haviam sido compostas nas sessões
de 1967 com Dylan. Além dessas três faixas, há mais um cover, um clássico do
country: “Long Black Veil”. De resto, foram compostas outras 7 canções para
integrar a obra. “To Kingdom Come”; “In A Station”; “Caledonia Mission”; “We
Can Talk”; “Chest Fever” e “Lonesome Suzie” são algumas acompanhantes de luxo
do carro-chefe da banda: “The Weight” (que, como falamos no texto sobre o
Basement Tapes, acabou virando sinônimo de algo genuinamente americano).
Unindo o legado dos tempos de
Ronnie Hawkins com o treinamento dylanesco, Garth, Levon, Richard, Rick e
Robbie criaram algo novo, único. Dali surge o tal do "roots rock", esse gênero
significativo que, na verdade, é uma grande mistura de tudo. Há no som
“inaugurado” em 'Music From Big Pink' uma união harmoniosa e orgânica de blues,
R&B, soul, country e folk. De Curtis Mayfield ao próprio Dylan, muita gente
serviu de base para esse espaço atemporal da música americana que é Music From
Big Pink. Essa nova perspectiva, por exemplo, foi o que levou Eric Clapton a
abandonar o Cream e procurar novas sonoridades junto do Blind Faith, e depois
apoiando o duo Delaney and Bonnie ou mesmo formando o projeto Derek and The
Dominos.
Robbie entrou com a maioria das
letras (das originais do grupo, apenas “We Can Talk” e “Lonesome Suzie” são de
autoria Richard Manuel) e com um trabalho de guitarra que, num primeiro
momento, não parece se destacar tanto. Rick Danko (baixo), Richard Manuel
(piano) e Levon Helm (bateria) também não fazem questão de se exibirem através
de seus instrumentos. Na verdade, apesar de em termos ‘instrumentais’, ser
Garth Hudson o verdadeiro gênio – e o som fulminante de seu órgão ser uma boa
chave de entendimento do que é a The Band – é o conjunto da obra que
impressiona. O absoluto clima de profunda amizade tira o fôlego, e a unidade do
som parece operar com o funcionamento de uma família que se ama. Robbie, certa
vez, disse que as músicas acabaram tão ‘redondas’ pelo fato de nenhum deles ser
um grande músico – modéstia à parte, a verdade é que eles desenvolveram uma
sinergia que representa muito bem como a música deveria ser, ao menos na minha
concepção de música.
Por outro lado, se quase não há
virtuosismo instrumental por parte dos membros da The Band, é difícil não ficar
absolutamente embasbacado com os vocais. O jogo de vozes estabelecido entre
Danko, Manuel e Helm é uma das coisas mais lindas que já ouvi por aí.
Individualmente, cada um deles representa um tipo de vocal diferente – algo
propício para a variedade de estilos e sonoridades que a banda abarcava -, mas
juntos eles se tornam deslumbrantes. A voz de Richard é uma faca afiada e
quente, usando um falsete lindo, ela desliza através dos corações como se
fossem feitos de manteiga – acho que no rock há poucas vozes tão lindas. Já
Rick é, normalmente, o mais descontraído dos três – ele costuma acrescentar um
tom “brincalhão” às músicas, embora também seja capaz de emocionar. E Levon,
talvez a figura paterna dessa família, traz autenticidade aos canadenses: como
bom sulista, seu sotaque acrescenta um sabor especial ao seu vocal carregado.
Ele é, acreditem-me, um artigo genuíno. Essa simbiose entre as vozes é uma forte marca da banda.
Apesar de todas essas qualidades
e da admiração de alguns músicos importantes, “Music From Big Pink” não foi um
sucesso instantâneo, todavia. As vendas começaram devagar, mas uma resenha
muito elogiosa de Al Kooper na revista 'Rolling Stone' ajudou a chamar mais
atenção para o surgimento da The Band. Em 1968, “Music From Big Pink” ficou na
30ª posição na lista de álbuns pop da 'Billboard', enquanto “The Weight” atingiu
apenas a 63ª posição na tabela de singles 'Billboard Hot 100'. Por outro lado, a
recepção foi um pouco mais calorosa no Canadá (35º lugar) e no Reino Unido
(21º). O que, pelo que me parece, foi fundamental no alavancamento da The Band
e do 'Music From Big Pink' ao sucesso foi a apresentação da banda no festival
Woodstock em 1969 e a inclusão de “The Weight” no magistral filme "Easy Rider" (Sem Destino),
também de 1969. Daí pra frente, ficou difícil segurar aquele pessoal. Em 2003, a
'Rolling Stone' elegeu “Music From Big Pink” como 34º melhor disco de todos os
tempos, em uma lista com 500 álbuns.
Em 2008, no aniversário de 40 anos de 'Music From Big Pink',
o disco recebeu uma edição remasterizada de luxo, com 9 faixas bônus. São elas:
“Yazoo Street Scandal”; um take alternativo de “Tears of Rage”, “Katie’s Been
Gone”; o cover de “If I Lose” (composta por Charlie Poole); “Long Distance Operator”;
um take alternativo de “Lonesome Suzie”; “Orange Juice Blues (Blues For
Breakfast)” (composta por Richard Manuel); cover do standard de blues composto
por Big Bill Broonzy, “Key To The Highway”; e “Ferdinand the Imposer”.
O fato é que mesmo depois de passados 45 anos, “Music From
Big Pink” permanece uma obra-prima da música norte-americana. Além de ter
influenciado, como já falamos antes, Clapton, Waters e Harrison, o disco também
ajudou a formar o gênero de roots rock. Aquele jeito, na época novo, de fazer o
rock parecer velho, como se viesse de um tempo imemorial – alguma época de ouro
perdida -, ainda é o exemplo mais bem acabado, na minha opinião, do benefício
que essa viagem pelas raízes musicais de um país pode trazer ao rock. “Music
From Big Pink” é uma aula sobre como fazer um disco: desde o conceito
‘orgânico’ das músicas, sem frescura ou exibicionismo gratuito, até à abertura
da mente dos músicos para novas influências.
Editor do site http://4oldtimes.blogspot.com e apresentador
dos programas 4oldtimes e Expedição ao Rock na web radio
www.radioputzgrila.com.br
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